terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O martírio da inglesa

Dr. Ronald Câmara

            Em Riga, uma inglesa foi impiedosamente trucidada, depois de sofrer as maiores vicissitudes. O palco dessa tragédia foi o teatro Raino Daib, por ocasião da 2ª rodada do torneio interzonal ora em curso na Capital da Letônia, tendo como implacável algoz o ex-campeão do mundo Miguel Tal e vítima inerme o conhecido grande-mestre Lev Polugaievsky.
          De natureza eclética e plena de possibilidades estratégicas a inglesa situa-se entre as mais sólidas e populares linhas de jogo. Por que então esse surpreendente revés? Quais os motivos desse resultado?
           Foi ocasionado pela disparidade de forças entre os contendores ou deveu-se ao aparecimento de um fato novo, capaz de mudar o panorama da luta?
         O desenrolar desse empolgante duelo mostra que essa última circunstância foi preponderante, surgindo em cena uma variante contra a inglesa de grande valor teórico e fadada a alcançar enorme repercussão.
         Além disso, Miguel Tal reviveu todo o esplendor dos seus melhores dias, atuando com rara inspiração e extraordinária habilidade, numa expressiva demonstração de seu exuberante talento e capacidade combinatória.
            Eis como aconteceu “o martírio da inglesa”:

Torneio interzonal A
Riga, 6 de setembro de 1979.
Abertura Inglesa (R-44/b)
Brancas – Lev Polugaievsky
Pretas – Miguel Tal

 1.c4 c5 2. Cf3 Cf6 3. Cc3 d4 4.cxd Cxd5 5.e4 O lance do texto conduz a posições agudas e ricas de possibilidades táticas. A alternativa 5.d4 desfruta da predileção dos jogadores posicionais e um dos exemplos mais recentes é a partida Portisch x Hubner, Montreal, 1979, apreciada em “Xeque-Mate” de 27.05.79)

5. ... Cb4 A continuação mais incisiva a troca 5. ... Cxc3 6.dxc3! Dxd1+ 7. Rxd1, garante às brancas promissoras perspectivas como atesta a partida Benko x Seirawan, Lene Pine, 1978) 6. Bc4 As preferências se dividem entre esta jogada e 6. Bb5+. Ambas são sobejamente conhecidas de Miguel Tal como evidenciam as suas partidas com Poutiainen e Tukmakov, em 1977.

6. ... Be6 7. Bxe6 Cd3+ 8. Rf1 fxe6 9. Cg5 Posição crítica dessa variante. Neste momento já foram tentadas as continuações 9. ... Cc6 e 9. ... Dd7. Ultimamente, essas alternativas sofreram sério reveses. 9. ... Db6! Como costuma acontecer com toda ideia nova: depois de descoberta parece simples e lógica. A defesa do peão de “e6” é feita simultaneamente com o ataque ao ponto vulnerável “f2”. É incrível que uma alternativa tão racional não tenha sido cogitada por abalizados pesquisadores como Michael Stean, D. Moiseev e G. Ravinsky que publicaram extensas análises sobre essa variante!

10. De2 Contra Dd2, a melhor resposta é 10. Df3! Como indicam diversos exemplos da prática magistral. Qual o motivo que levou Polugaievsky a rejeitar essa continuação que é bem mais ativa? É provável que, neste caso, Tal houvesse continuado da mesma maneira com 10. ... c4 e após 11. Df7+ Rd7!, seguindo eventualmente de h6 e Cc6, com promissora iniciativa. 10. ... c4 11.b3 h6 12. Cf3 É evidente que 12.bxc Cf4, as pretas ganhariam uma peça. A opção atraente, porém, era 12. Dh5+ Rd7 13. Ch3, conservando as chances na balança.

12. ... Cc6 13.bxc 0-0-0! A batalha inicial foi ganha pelas pretas: além da superioridade em desenvolvimento, a posição comporta grandes possibilidades de ataque que serão magistralmente aproveitadas por Miguel Tal. 14.g3 Se polugaievsky soubesse o que lhe reservava o futuro, teria preferido afastar o incomodo corcel de “d3”, mediante 14. Cd5!? exd5 15. Dxd3, aliviando a pressão em torno de seu rei.

14. ... g5 15. Rg2 Bg7 16. Tb1 Dc5 17. Cb5 g4 18. Ch4 Thf8 A supremacia das pretas é patente e a partir deste instante a ofensiva é conduzida de forma precisa e elegante com todos os “condimentos” que caracterizam o estilo de Tal: impetuosidade, intuição e senso tático. 19. Tf1 Dxc4 É sempre agradável poder efetuar uma captura que cria uma ameaça mortal: 20 ... Cf4+ ganhando a dama.

20. De3 Seria funesto 20. Dxg4, por causa de 20. ... Cxf2 21. Txf2 Txf2+ 22. Rxf2 Tf8+ 23. Cf3 (se 23. Cf5 Txf5+ era decisivo) 23. ... Ce5 24. Dxg7 Txf3+ seguido de mate. 20. ...Cxf2! Um engenhoso sacrifício que traz a marca inconfundível do “genial combinador de Riga”. 21. Cg6 A aceitação do cavalo teria sido fatal: 21. Txf2 Txf2+ 22. Rxf2 (22. Dxf2 Dx34 era conclusivo) 22. ... Tf8+ 23. Cf5 exf5, com fácil triunfo. Por outro lado, era também desastroso 21. Cxa7+ Cxa7 22. Dxa7 Dxe4+ 23. Rg1 Dh1++. 21. ... Td3 22. Ca3 Da4 23. De1 T(d3)f3 24. Cxf8 Cd3 25. Dd1 Após 25. De2, surgiria 25. ... Cd4! 26. Dd1 Dxd1 27. Txd1 Tf2+ 27. Rh1 Cf3 com mate inevitável. 

25. ... Dxe4 Era também conclusivo 25. ... Dxd1 26. Txd1 Tf2+ 27. Rh1 Cd4 28. Bb2 Cf3! 29. Tbc1+ Rd8 30. Cxe6+ Rd7 31. Cf8+ Re8, seguido de mate. 26. Txf3 gxf3+ 27. Rf1 A situação das brancas já é sem esperanças: se 27. Rh3? Cf2 mate, enquanto que 27. Rh1? F2+, seguido de mate. Por outro lado, 27. Dxf3, permitia 27. ... Ce1+, ganhando a dama. 27. ... Df5! 28. Rg1 Bd4+ As brancas abandonaram. Após 29. Rf1 Dh3 mate, ao passo que 29. Rh1 Cf2+ era fulminante. Uma esplêndida partida de Miguel Tal.


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