quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Minha homenagem à Professora Sônia do Amaral Russo.

É com muito pesar que posto no meu blog a notícia de que na última quinta-feira dia 23 de fevereiro faleceu a minha primeira e única professora de xadrez: Sônia do Amaral Russo, vítima de Câncer de Mama contra o qual ela vinha lutando desde o início do segundo semestre de 2011. Muitos enxadristas ativos até hoje devem se lembrar dela, principalmente os enxadristas que frequentavam os torneios da SOGIPA quando comecei a jogar, pois, no início, a professora costumava me acompanhar em quase todos os torneios. Ela é muito importante para mim, não só no xadrez, mas também na vida. Por essa razão, como homenagem, vou escrever aqui um pouco da nossa história juntos com o xadrez. 

Foi na Escola Itália em meados do ano 2000 que fiquei sabendo que uma das professoras de Educação Física ensinava xadrez no turno inverso das aulas. Na época, eu estava na sétima série e tinha apenas 12 anos de idade. Eu me sentia completamente deslocado numa escola nova, onde a maioria dos meus colegas se conheciam desde as primeiras séries. As aulas de xadrez aconteciam nas terças e quintas feiras à tarde e foi aí que tive meu primeiro contato com a professora Sônia. O princípio foi difícil, o jogo parecia demais pra mim e eu não era o aluno mais brilhante - tinha muitas dificuldades nas matérias escolares. Mas aos poucos fui pegando o jeito e a professora com muita paciência me fez amar o xadrez.

Nunca esqueço da primeira aula que tive com ela. O primeiro passo foi arrumar as peças nos seus devidos lugares no tabuleiro. Ela me fez imaginar uma cidade enorme, com torres nas pontas onde os soldados guardavam e vigiavam o reino todo com sua visão privilegiada. Na sombra das torres descansavam os cavalos e os donos dos cavalos eram os bispos e depois vinham o rei e a rainha. À frente de todos os bravos peões que naquele momento mesmo aprendi: são a alma do xadrez. Depois disso, o movimento de cada peça, muita coisa para memorizar, eu fui tentando, errando, acertando, rindo, brincando com a professora e com meus colegas - lembro que certa vez peguei com muita confiança a minha dama lá da retaguarda e tomei uma importante peça da professora e ela disse: Sim, esse seria um bom lance se essa peça não fosse o teu rei e apontando disse ainda: A tua dama é essa aqui.

Não parei de jogar. Jogava todos os dias com meu grande amigo Fábio e aos poucos nós fomos evoluindo. Foi a partir do momento que a professora Sônia nos "emprestou" o primeiro livro - Xadrez Básico do D'agostine (tenho ele até hoje guardado comigo e nunca o devolvi, apesar de algumas investidas da professora para tê-lo de volta) - que eu comecei a me diferenciar dos meus adversários, amigos, vizinhos, do meu pai e também da professora. Como consequência minhas notas no colégio começaram a melhorar e muito e as minhas dificuldades de aprendizado desapareceram de uma ano para o outro e eu nunca mais precisei me preocupar com o meu rendimento escolar. Por essa razão também sou muito grato à professora Sônia - não fosse os esforços dela em ensinar xadrez sem apoio nenhum da escola, sem pedir nada em troca, talvez eu não estivesse hoje prestes a me formar no curso de Letras da UFRGS.

Depois de ter me ensinado a jogar e me emprestado o livro a Professora Sônia começou a me levar aos primeiros torneios e então comecei a jogar na SOGIPA. A Professora orgulhosa apresentou seu aluno para o Diretor do Departamento de Xadrez Fred Shaffer e para os demais jogadores - eu, desde aquela época muito tímido, creio que não abri a boca para nada: só queria jogar xadrez. Fiquei admirando o pessoal adulto conversando sobre xadrez, na minha concepção eram todos mestres de alto gabarito e o meu sonho era ser como eles e falar sobre coisas complexas do xadrez exatamente como eles estavam conversando. Enfrentei meu primeiro adversário em torneios no dia 05 de abril de 2001 e ele foi o João Carlos Orguim - eu apenas um guri franzino - ele alto, forte, com óculos fundo de garrafa e com ar de intenso pensador - apesar do receio em enfrentar tal adversário, eu ainda tinha a ingênua confiança de que poderia derrotar qualquer um, foi assim que a professora Sônia tinha me motivado e, afinal, eu tinha estudado seriamente o D'agostine. Durante a partida, pela falta de costume, eu esquecia de apertar o relógio depois de meus lances e a professora lá de longe ficava me olhando e fazendo um gesto de cima para baixo com sua mão - ela repetiu esse gesto muitas vezes pelos menos nas primeiras 5 partidas que joguei na SOGIPA, até que eu comecei a apertar no relógio automaticamente depois de meus lances.



Como os torneios na SOGIPA são à noite, a professora Sônia me levava em casa depois de cada rodada. Se não fosse assim acredito que meus pais não me deixariam participar. Depois descobrimos que o Fred morava próximo a minha casa e ele muito gentilmente passou a me deixar na porta da minha casa após as rodadas.

No primeiro torneio perdi 4 partidas das 5: Orguim, Ari Born, Manuel Burigo e Homero. Mas também obtive o meu primeiro triunfo jogando contra o Jorge Santos. Comemoramos muito eu e a professora e repassamos a partida diversas vezes.




No lance 25 dessa partida, ela questionou: Por que tu entregou o teu bispo? E eu tive a oportunidade de explicar pra ela a teoria da simplificação de Capablanca. Agora era ela também que estava ávida por aprender mais sobre xadrez.

Continuei jogando na SOGIPA e para ampliar meus horizontes a professora passou a me levar nos torneios escolares do Professor Homero Gomes no colégio Liberato em Novo Hamburgo. Nos acordávamos bem cedo e nos encontrávamos no centro de Porto Alegre para pegar o ônibus. Durante a viagem conversávamos e resolvíamos exercícios variados, não só de xadrez.

Nesse meio tempo a professora, como sócia-atleta da SOGIPA, tirava livros pra mim da biblioteca do clube e eu podia escolher quantos eu quisesse. Dessa forma eu constantemente estava lendo coisas novas sobre xadrez e o meu mundo do xadrez que até então era limitado às verdades do D'agostine, passou a se ampliar aos poucos. E aqui eu toco num ponto importante do meu relato: Qual é a tarefa de um professor? ensinar. Sim, muito bem. Mas muito mais do que isso, motivar o seu aluno a ir em busca do conhecimento, contruir junto com ele o conhecimento, deixá-lo sempre com a certeza de que há muito a aprender e motivá-lo mesmo que o caminho seja longo e doloroso a encará-lo de frente. A professora Sônia não tinha grande conhecimento específico de xadrez, mas soube me auxiliar, me indagar, me instaurar dúvidas e me fornecer todas as ferramentas possíveis que estavam ao alcance dela para saná-las e para que eu pudesse continuar evoluindo. E graças a minha vontade aliada aos esforços da professora eu evolui. A minha melhor partida desse meu primeiro ano de xadrez foi contra o Fred Shaffer jogada no dia 16 de agosto de 2001:




Repassei a partida para a professora. Não preciso nem falar do orgulho e da felicidade que ela sentiu e me expressou abertamente com muita festa. Pode parecer exagerado falar dessa maneira, mas não tenho vergonha em dizer que foi sim uma grande conquista. Para nós dois. No outro ano eu já estava enfrentando os jogadores da SOGIPA de igual para igual.




Infelizmente os anos vão passando e os contatos vão se perdendo. Quando terminei o ensino fundamental tive que trocar novamente de escola pela sétima vez, pois a escola Itália na época não tinha ensino médio. Por isso, comecei a encontrar a professora somente de vez em quando na SOGIPA antes das rodadas. Ela queria muito que eu a ensinasse o que eu estava aprendendo e pude dar umas três aulas pra ela. Depois deixei um pouco o xadrez de lado para fazer outras coisas e fiquei um bom tempo sem vê-la. Apenas trocávamos alguns e-mails. Mas então a professora começou o curso de agronomia na UFRGS e podemos nos encontrar várias vezes para almoçar no RU no Campus do Vale e colocar nossa conversa em dia. Depois perdemos de novo o contato e eu não sei se ela ficou sabendo do meu enfrentamento contra o Kasparov.

A saudade já está doendo e tudo o que eu queria nesse momento era poder ligar pra ela pra combinar de tomar um café e ensinar mais um pouco de xadrez pra professora que com recursos tão escassos foi capaz de mudar a minha vida.

Muito obrigado, Professora Sônia do Amaral Russo.

Infelizmente não tenho nenhuma foto com ela, mas é exatamente assim que era será lembrada.

5 comentários:

  1. Apesar de trocar apenas algumas palavras com ela,pude notar que era uma pessoa estremamente diferenciada do comum!Parabéns por ter convivido com esta professora da vida!

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  2. Obrigada pela homenagem! Ela não sube do enfrentamento com o Kasparov, ou então toda a cidade já estaria sabendo - com certeza ela diria "meu aluninho aprendeu xadrez e se desenvolveu tanto que jogou contra o Kasparov" carregando um sorriso de orelha a orelha!! As conquistas dos alunos e alunas deixavam a minha mãe feliz da mesma forma que as conquistas minhas e da Sílvia, filhas.
    Um grande abraço!

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  3. Grande homenagem parabéns Eider. (Vladimir Fallavena)

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  4. Pessoas de fundamento tornam -se eternas. Fostes previlegiado por tão enriquecedora convivência.

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  5. Pessoas que marcam nossas vidas jamais são esquecidas! Onde ela esteja, está vendo o que seu trabalho maravilhoso resultou!!!
    Parabéns pela homenagem!
    Abraço!

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